terça-feira, 28 de maio de 2024

 O ULTRARROMANTISMO

BULHÃO PATO



CARTA

Quando partiste ainda havia
Um sol como de verão.
Partiste, e logo a invernia
— Triste do meu coração —
Rompeu de cara sombria.

Mar que vias da janela,
Tão sereno e tão azul,
Torvo ao largo se encapela
Com as lufadas do sul,
Dando núncios da procela.

Uma avesita arribada,
Que à tarde poisou aqui,
Soltou um pio magoada;
Como eu as tenho de ti
Teve saudades, coitada!

Saudades… se breve espero
Ver-te, que estás a dois passos?
Sempre a um pai é desespero
Não ter a filha nos braços,
E eu como a filha te quero.

De passagem te direi
Que ontem, descendo o valado,
Com a casa defrontei,
E, vendo tudo fechado,
Por vergonha não chorei.

Quando do alto do casal
Me avistavam da janela,
Que alegria triunfal! …
Eras tu, e a Filomela,
E os lenços num vendaval!

— «Depressa, que o tio espera,
Jantar na mesa, são horas.»
E a tentar cara severa,
E rindo como as auroras
Dos dias da primavera!

Agora vêm da invernia
As cordas d’água puxadas
Na força da ventania,
E essas janelas cerradas,
E eu sem a vossa alegria!…

Já nem sei o que escrevi…
Vou fechar a carta. Adeus!
Guarda um beijo para ti,
Dá-me um abraço nos teus,
Y nó te olvides de mi!

Bulhão Pato





        Raimundo António de Bulhão Pato, de seu nome completo, nasceu em Bilbau por ser filho
 de mãe espanhola, em 3 de março de 1828, vindo a falecer no Monte da Caparica, em 24 
de agosto de 1912.
        Tornou-se conhecido no mundo das letras pela sua contribuição para a poesia ultrarromântica.
        Frequentador de saraus literários, era um bon vivant, tendo-nos deixado a sua famosa receita de Ameijoas à Bulhão Pato.


sábado, 18 de maio de 2024

 ENCONTRO





Encontro

Corro na praia deserta,
Bem junto à beira do mar,
É algo que me desperta
Duma forma salutar.

Vou pelo sopro do vento,
Que propaga a maresia,
Ganho sempre novo alento,
Que me enche de alegria.

No desenrolar das ondas
Vejo emergir sereias,
Peitos de formas redondas
Entoando melopeias..

No fundo do areal,
Sereia feita mulher,
Numa visão mais real
Seu corpo deixa entrever.

Nesse encontro só almejo,
Nessa praia sem ter fim,
Colher tal como desejo
Essa flor do teu jardim.

Juvenal Nunes





sábado, 11 de maio de 2024

 POETAS DE PARABÉNS

MÁRIO BEIRÃO





Aleluia

Se cantas, nasce o dia;
A luz segreda à flor: Ave, Maria!

Tudo é silêncio, espanto,
Quando vaga no Azul o teu encanto...

Passas e deixas no ar
O perfume das rosas de toucar!

Creio em ti, como em Deus;
Viver à tua luz é estar nos Céus!

Verdes enleios de hera
Cingem de amor teu vulto, ó Primavera!

Nos perdidos caminhos,
Voam gorjeios, músicas dos ninhos...

A Terra em névoas de ouro
Ascende a Deus em teu olhar de choro!

Senhora da Harmonia,
Em ti a minha vida principia!

Se voas pela Altura,
Gravas no Azul a tua formosura!

Teu voo é um longo adeus:
O caminho das almas para os Céus...

Longe, saudosa, adejas,
E pairas sobre mim... bendita sejas!

Mário Beirão








        Natural de Beja, onde nasceu em 1 de maio de 1890, Mário Beirão faleceu em Lisboa 
em 19 de fevereiro de 1965.
        Foi contemporâneo e colega de Américo Durão e Florbela Espanca.
        A sua sensibilidade espelha o sentir da alma nostálgica. Hernâni Cidade considera-o, 
depois de Teixeira de Pascoaes, o maior poeta saudosista do seu tempo.

sábado, 4 de maio de 2024

 POEMAS POR TEMAS

DESEJO





Tema: Desejo


No Obscuro Desejo

No obscuro desejo,
no incerto silêncio,
nos vagares repetidos,
na súbita canção

que nasce como a sombra
do dia agonizante,
quando empalidece
o exterior das coisas,

e quando não se sabe
se por dentro adormecem
ou vacilam, e quando
se prefere não chegar

e sabê-lo, a não ser,
pressentindo-as, ainda
um momento, na aresta
indizível do lusco-fusco.

Vasco Graça Moura







        Vasco Graça Moura nasceu no Porto, a 3 de janeiro de 1942 e faleceu em Lisboa, a 27 
de abril de 2014.
        Foi escritor, tradutor e político. Como escritor deixou assinalável obra poética.
        Notabilizou-se, também, por ser um intransigente defensor da língua portuguesa.
        Foi um dos autores da proposta para a realização da Exposição Mundial de 1998, em Lisboa.