domingo, 29 de outubro de 2023

 O ROMANTISMO

ALEXANDRE HERCULANO





A Graça

Que harmonia suave
É esta, que na mente
Eu sinto murmurar,
Ora profunda e grave,
Ora meiga e cadente,
Ora que faz chorar?
Porque da morte a sombra,
Que para mim em tudo
Negra se reproduz,
Se aclara, e desassombra
Seu gesto carrancudo,
Banhada em branda luz?
Porque no coração
Não sinto pesar tanto
O férreo pé da dor,
E o hino da oração,
Em vez de irado canto,
Me pede íntimo ardor?

És tu, meu anjo, cuja voz divina
Vem consolar a solidão do enfermo,
E a contemplar com placidez o ensina
De curta vida o derradeiro termo?

Oh, sim!, és tu, que na infantil idade,.
Da aurora à frouxa luz,
Me dizias: «Acorda, inocentinho,
Faz o sinal da Cruz.»
És tu, que eu via em sonhos, nesses anos
De inda puro sonhar,
Em nuvem d'ouro e púrpura descendo
Coas roupas a alvejar.
És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga,
Junto ao bosque fremente,
Me contavas mistérios, harmonias
Dos Céus, do mar dormente.
És tu, és tu!, que, lá, nesta alma absorta
Modulavas o canto,
Que de noite, ao luar, sozinho erguia
Ao Deus três vezes santo.
És tu, que eu esqueci na idade ardente
Das paixões juvenis,
E que voltas a mim, sincero amigo,
Quando sou infeliz.
Sinta a tua voz de novo,
Que me revoca a Deus:
Inspira-me a esperança,
Que te seguiu dos Céus!...

Alexandre Herculano






        De seu nome completo Alexandre Herculano de Carvalho Araújo nasceu em Lisboa, 
em 28 de março de 1810 e faleceu no seu retiro de Santarém, em 13 de setembro de 1877.
        Notabilizou-se como historiador, jornalista e poeta da era do Romantismo.
        Defendeu a causa liberal, pela qual lutou militarmente tendo participado no Cerco do Porto.
        Acabou por recusar as honrarias que lhe foram concedidas.

domingo, 22 de outubro de 2023

 POETAS DE PARABÉNS

RUI PIRES CABRAL




A Nossa Vez

É o frio que nos tolhe ao domingo
no Inverno, quando mais rareia
a esperança. São certas fixações
da consciência, coisas que andam
pela casa à procura de um lugar

e entram clandestinas no poema.
São os envelopes da companhia
da água, a faca suja de manteiga
na toalha, esse trilho que deixamos
atrás de nós e se decifra sem esforço
nem proveito. É a espera

e a demora. São as ruas sossegadas
à hora do telejornal e os talheres
da vizinhança a retinir. É a deriva
noturna da memória: é o medo
de termos perdido sem querer

a nossa vez.

Rui Pires Cabral







        Rui Pires Cabral é um poeta português nascido a 1 de outubro de 1967, em Chacim, aldeia 
de Macedo de Cavaleiros.
        Publicou vários livros de poesia, sendo que o primeiro ocorreu em 1985 e intitulava-se Qualquer Coisa Estranha.
        A sua obra poética oscila entre um cosmopolitismo consciente em contraste com o 
mundo rural que lhe deu o ser.

domingo, 15 de outubro de 2023

 POEMAS POR TEMAS

AMOR



Tema: Amor




O Amor Quando Se Revela

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p’ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente…
Cala: parece esquecer…

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P’ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar… 

Fernando Pessoa







        Em 13 de junho de 1888, nasceu em Lisboa o poeta Fernando Pessoa, tendo falecido, na mesma cidade, em 30 de novembro de 1935. 
        Manifestou diversas personalidades literárias expressas nos diferentes heterónimos. É figura central do Modernismo português. Foi também um homem multifacetado tendo sido tradutor, publicitário, astrólogo, filósofo, dramaturgo, ensaísta e crítico literário.
        A verdadeira dimensão da sua obra só foi conhecida postumamente.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

 OLHAR O OUTONO






Olhar o Outono

Contemplo pela vidraça
As folhas em mutação,
Na cor que muda e que passa
A fazer tela no chão.

O outono é bom pintor,
Faz da folha sua tela,
Dando a cada uma a cor
Com que pinta a aguarela.

É de efémera vaidade
Tão colorida roupagem,
Breve cai com mansidade
Arrastada pela aragem.

É então que chega a hora
Das aves de migração,
É tempo de irem embora,
Cumprirem sua missão.

A pouco e pouco se instala
Um silêncio que aparece,
Passarada que abala
Porque o tempo adormece.

Há um novo desafio
De que este tempo é dono
Fazer do tempo mais frio
Porque é tempo do outono.

Tempo de melancolias,
Árvores de membros lassos,
Eu ouço nas ramarias
O choro nu dos seus braços.

Juvenal Nunes