O
Cisne do Vouga
A constante humanização da paisagem, com o desbravar contínuo de
espaços à natureza pertencentes, levou a que o homem se preocupasse com a
criação de nichos ou santuários, que respeitassem a preservação das espécies
vegetais e animais. Na sequência dessa situação, a observação de aves, no seu
meio natural, constituiu-se numa forma de turismo da natureza, produto
turístico de estratégia, enquadrado em atividades de lazer.
A exploração destas atividades é de tal forma importante que atrai a
Portugal, anualmente, milhares de turistas. Pode avaliar-se a importância desta
atividade se considerarmos, por exemplo, que Portugal é o único país da Europa
onde é possível avistar-se uma águia imperial ou uma pega azul.
O avistamento de que aqui pretendo falar, contudo, é do Cisne do Vouga.
O cisne não é autóctone da avifauna portuguesa e a sua ocorrência, em Portugal,
é extremamente rara, mas este de que falo foi extremamente popular e conceituado
na sua época e entre os seus pares, daí o epíteto que serve de título a este
texto. Os seus voos não se realizavam em campo aberto, antes em sessões
artísticas em tertúlias, salões e academias.
De quem se trata pois? Falo do poeta Francisco Joaquim Bingre, que
viveu entre os sécs. XVIII e XIX. Nasceu na povoação de Canelas, situada na
margem direita do Vouga, entre Angeja e Estarreja.
Quando os seus pais se mudaram para Lisboa, por motivo de negócios,
acompanhou-os, mas a responsabilidade que lhe era exigida na atividade negocial
dos seus progenitores aligeirou-a, entregando-se a uma febril e intensa
participação em boémias sociais e tertúlias de cariz literário.
Possuía um fértil estro repentino que o transmutava sempre que se
manifestava, revelando-o como um puro talento inato. A sua torrencial produção
artística estendeu-se por cançonetas, elegias, epístolas, fábulas, hinos,
madrigais, odes, sátiras, sonetos. Juntamente com Curvo Semedo, Ferrás de
Campos e Caldas Barbosa foi fundador e sócio nº1 da Nova Arcádia de Lisboa, no
ano de 1790. As sessões realizadas rapidamente foram implementadas e
enriquecidas pela dinâmica de novos convidados como Bocage, também prestimoso
improvisador e José Agostinho de Macedo. Com o decorrer do tempo esses encontros
eivaram-se de controvérsias de que resultaram polémicas aguerridas e virulentas,
que conduziram a desconforto e incompatibilidades entre os intervenientes, pelo
que a duração da Nova Arcádia não foi além de um lustro, acabando por finar-se
em 1795.
Enquanto membro da Nova Arcádia, Francisco Joaquim Bingre usou o
criptónimo de Francélio Vouguense, numa alusão clara às suas origens. O fim da
academia por si fundada, bem como o seu envolvimento em questões de natureza
política, tratava-se de um liberal, levaram-no a que se retirasse para a vila
de Mira, no distrito de Coimbra, em 1801. Aí exerceu funções de escrivão do
Juízo, de Câmara e tabelião.
Apesar das suas obrigações profissionais nunca deixou de escrever, e
mesmo quando esteve fisicamente inapto para o fazer ditava os seus poemas a um
neto padre. Tendo estas linhas um caráter biográfico e de divulgação do seu
nome e obra, transcrevo, de
verbo ad verbum, um poema autobiográfico de Bingre, no
ocaso da vida:
«Na aldeia de Canelas fui criado,
E nela também tive o nascimento;
Na corte de Lisboa, a meu contento,
Longo tempo fui afortunado:
Por génio natural às musas dado,
Numa Arcádia de um sábio ajuntamento,
Cultivei na poesia o meu talento,
E por Cisne do Vouga fui
cantado:
A Fortuna, que às cegas sempre gira
Dando-me um encontrão daquela altura,
Nos vergéis me lançou da areenta Mira:
Aqui sem fausto algum, e sem ventura,
Quarenta anos pulsei eu inda a lira,
E aqui me abriu a morte a sepultura.»
Autor de uma abundante e extensa produção, só um número reduzidíssimo
dos seus textos foi publicado enquanto viveu, apesar dos esforços do seu
patrício Sebastião de Carvalho Lima em tornar pública a sua obra. Considerado
um poeta pré-romântico é aceite como autor de nomeada pela qualidade acima da
média dos seus textos.
Mais recentemente, entre 2000-2005, a professora Vanda Anastácio
esmerou-se numa edição crítica da sua obra, em 6 volumes, publicada por uma das
mais renomadas e prístinas editoras do Porto. Foi um importante contributo para
a visibilidade e conhecimento deste autor, de quem se lamenta, pela sua
qualidade e apesar de algumas iniciativas tomadas, não fazer parte dos estudos
da História da Literatura Portuguesa.
Bingre veio a falecer aos 93 anos de idade, encontrando-se sepultado em
Mira, em jazigo de família. A edilidade de Estarreja homenageou-o atribuindo o
seu nome a uma das ruas da localidade e Canelas, terra da sua naturalidade,
preiteou-o conferindo o seu nome à banda filarmónica da vila.
Possa a escrita deste texto contribuir para melhorar as possibilidades
de avistamento do Cisne do Vouga, para que o seu voo tenha mais visibilidade no
universo das letras portuguesas.
Juvenal
Nunes
..., olá, Juvenal. ..., grato pelo toque da sua postagem sobre Francisco Joaquim Bingre. ..., que este não seja o canto do Cisne de Vouga, assim ele pode continuar voando e pousar onde bem queria seus belos versos. abs. T+
ResponderEliminarO seu comentário, que agradeço, é uma justa valorização do referido poeta.
ResponderEliminarAbraço amigo.
Juvenal Nunes