quinta-feira, 28 de novembro de 2019


O Cisne do Vouga


A constante humanização da paisagem, com o desbravar contínuo de espaços à natureza pertencentes, levou a que o homem se preocupasse com a criação de nichos ou santuários, que respeitassem a preservação das espécies vegetais e animais. Na sequência dessa situação, a observação de aves, no seu meio natural, constituiu-se numa forma de turismo da natureza, produto turístico de estratégia, enquadrado em atividades de lazer.
A exploração destas atividades é de tal forma importante que atrai a Portugal, anualmente, milhares de turistas. Pode avaliar-se a importância desta atividade se considerarmos, por exemplo, que Portugal é o único país da Europa onde é possível avistar-se uma águia imperial ou uma pega azul.
O avistamento de que aqui pretendo falar, contudo, é do Cisne do Vouga. O cisne não é autóctone da avifauna portuguesa e a sua ocorrência, em Portugal, é extremamente rara, mas este de que falo foi extremamente popular e conceituado na sua época e entre os seus pares, daí o epíteto que serve de título a este texto. Os seus voos não se realizavam em campo aberto, antes em sessões artísticas em tertúlias, salões e academias.
De quem se trata pois? Falo do poeta Francisco Joaquim Bingre, que viveu entre os sécs. XVIII e XIX. Nasceu na povoação de Canelas, situada na margem direita do Vouga, entre Angeja e Estarreja.
Quando os seus pais se mudaram para Lisboa, por motivo de negócios, acompanhou-os, mas a responsabilidade que lhe era exigida na atividade negocial dos seus progenitores aligeirou-a, entregando-se a uma febril e intensa participação em boémias sociais e tertúlias de cariz literário.
Possuía um fértil estro repentino que o transmutava sempre que se manifestava, revelando-o como um puro talento inato. A sua torrencial produção artística estendeu-se por cançonetas, elegias, epístolas, fábulas, hinos, madrigais, odes, sátiras, sonetos. Juntamente com Curvo Semedo, Ferrás de Campos e Caldas Barbosa foi fundador e sócio nº1 da Nova Arcádia de Lisboa, no ano de 1790. As sessões realizadas rapidamente foram implementadas e enriquecidas pela dinâmica de novos convidados como Bocage, também prestimoso improvisador e José Agostinho de Macedo. Com o decorrer do tempo esses encontros eivaram-se de controvérsias de que resultaram polémicas aguerridas e virulentas, que conduziram a desconforto e incompatibilidades entre os intervenientes, pelo que a duração da Nova Arcádia não foi além de um lustro, acabando por finar-se em 1795.
Enquanto membro da Nova Arcádia, Francisco Joaquim Bingre usou o criptónimo de Francélio Vouguense, numa alusão clara às suas origens. O fim da academia por si fundada, bem como o seu envolvimento em questões de natureza política, tratava-se de um liberal, levaram-no a que se retirasse para a vila de Mira, no distrito de Coimbra, em 1801. Aí exerceu funções de escrivão do Juízo, de Câmara e tabelião.
Apesar das suas obrigações profissionais nunca deixou de escrever, e mesmo quando esteve fisicamente inapto para o fazer ditava os seus poemas a um neto padre. Tendo estas linhas um caráter biográfico e de divulgação do seu nome e obra, transcrevo, de verbo ad verbum, um poema autobiográfico de Bingre, no ocaso da vida:

«Na aldeia de Canelas fui criado,
E nela também tive o nascimento;
Na corte de Lisboa, a meu contento,
Longo tempo fui afortunado:

Por génio natural às musas dado,
Numa Arcádia de um sábio ajuntamento,
Cultivei na poesia o meu talento,
E por Cisne do Vouga fui cantado:

A Fortuna, que às cegas sempre gira
Dando-me um encontrão daquela altura,
Nos vergéis me lançou da areenta Mira:

Aqui sem fausto algum, e sem ventura,
Quarenta anos pulsei eu inda a lira,
E aqui me abriu a morte a sepultura.»





Autor de uma abundante e extensa produção, só um número reduzidíssimo dos seus textos foi publicado enquanto viveu, apesar dos esforços do seu patrício Sebastião de Carvalho Lima em tornar pública a sua obra. Considerado um poeta pré-romântico é aceite como autor de nomeada pela qualidade acima da média dos seus textos.
Mais recentemente, entre 2000-2005, a professora Vanda Anastácio esmerou-se numa edição crítica da sua obra, em 6 volumes, publicada por uma das mais renomadas e prístinas editoras do Porto. Foi um importante contributo para a visibilidade e conhecimento deste autor, de quem se lamenta, pela sua qualidade e apesar de algumas iniciativas tomadas, não fazer parte dos estudos da História da Literatura Portuguesa.
Bingre veio a falecer aos 93 anos de idade, encontrando-se sepultado em Mira, em jazigo de família. A edilidade de Estarreja homenageou-o atribuindo o seu nome a uma das ruas da localidade e Canelas, terra da sua naturalidade, preiteou-o conferindo o seu nome à banda filarmónica da vila.
Possa a escrita deste texto contribuir para melhorar as possibilidades de avistamento do Cisne do Vouga, para que o seu voo tenha mais visibilidade no universo das letras portuguesas.


Juvenal Nunes


2 comentários :

  1. ..., olá, Juvenal. ..., grato pelo toque da sua postagem sobre Francisco Joaquim Bingre. ..., que este não seja o canto do Cisne de Vouga, assim ele pode continuar voando e pousar onde bem queria seus belos versos. abs. T+

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  2. O seu comentário, que agradeço, é uma justa valorização do referido poeta.
    Abraço amigo.
    Juvenal Nunes

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